Nesta oitava edição da coluna “Raízes
Contábeis: Uma Jornada Histórica”, apresentamos uma edição temática referente ao
mês de maio, período do ano em que recordamos um marco histórico: a abolição da
escravatura no Brasil. No dia 13 de maio de 1888, foi assinada a legislação
amplamente conhecida como “Lei Áurea”.
Você,
leitor da coluna, pode estar se perguntando: qual é a relação da prática
contábil com esse marco histórico nacional?
Estudos
científicos nacionais (Silva, 2014; Silva et al., 2021; Monteiro e Melo, 2021;
Lira et al., 2023) comprovam o uso multifacetado da contabilidade no período
escravocrata. Exploraremos mais profundamente essas perspectivas de aplicação
da contabilidade nesta edição temática: “Contabilidade e Escravidão”.
A
contabilidade, como ciência social aplicada, reflete as próprias estruturas
sociais, marcadas por inclinações ideológicas dos contextos políticos,
econômicos e culturais. No período escravocrata, foi utilizada como uma
linguagem de influência, seja em prol da abolição da escravatura (ver Lira et
al., 2023), seja na legitimação de mecanismos que sustentavam esse regime de
exploração (ver Silva, 2014; Silva et al., 2021; Monteiro e Melo, 2021).
Para
nós, profissionais da contabilidade, refletir sobre a história da ciência que
praticamos e reconhecer seu papel de influência é essencial para que não
repitamos os mesmos erros de períodos históricos anteriores. Os escravizados
eram considerados patrimônio de seus senhores; dessa forma, a lógica contábil
esteve presente em diversos dispositivos de controle e gestão, para além do
débito e crédito que usualmente compreendemos como exercício da contabilidade.
No
período escravocrata, a contabilidade foi utilizada para instituir critérios de
avaliação desse “patrimônio” dos senhores de escravizados. Além disso, esteve
presente no funcionamento do Fundo de Emancipação, uma repartição pública que
constituía recursos financeiros para ressarcir os proprietários de terras à
medida que libertavam seus escravizados.
Indico,
a seguir, algumas leituras adicionais para uma compreensão mais detalhada dessa
vertente da aplicação da contabilidade:
Silva,
A. R., Vasconcelos, A., & Lira, T. A. (2021). Inscrições contábeis para o
exercício do poder organizacional: O caso do fundo de emancipação de escravos
no Brasil. Revista de Administração de Empresas, 61, ee2019-0448.
Silva,
A. R. (2014). A prática da contabilidade ao serviço da Escravatura no Brasil:
Uma análise bibliográfica e documental. Revista Contabilidade &
Finanças, 25, 346-354.
Monteiro,
J. P. V., & Melo, V. P. Z. D. (2023). Registros contábeis e escravatura no
Brasil oitocentista: uma abordagem histórica. Cadernos EBAPE. BR, 21(3),
e2022-0066.
Por
outro lado, a contabilidade também foi aplicada na mobilização social de
argumentos que defendiam a abolição da escravatura no Brasil. A linguagem
contábil foi utilizada para questionar a viabilidade econômica e a moralidade
do sistema escravista, buscando demonstrar que a escravidão, além de uma
prática moralmente condenável, era financeiramente insustentável e ineficaz
para o desenvolvimento do país. Discursos em espaços públicos eram proferidos
em defesa da causa abolicionista, fundamentados em termos contábeis como forma
de legitimar esse discurso de resistência.
Adicionalmente,
indico alguns estudos que investigaram a aplicação da contabilidade como uma
linguagem de resistência nesse período escravocrata:
Lira,
T. A., Pacheco, V. (2023). O Counter
accounting e a Ideologia Pró-Abolicionista no Brasil: o caso da Sociedade
Contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e Civilização dos
Indígenas (1849 – 1852). https://hdl.handle.net/1884/81815
Diante
do exposto, torna-se necessário que nós, profissionais do campo contábil,
reflitamos sobre o nosso papel enquanto sujeitos sociais e sobre a influência
múltipla da prática contábil em períodos marcantes da história do Brasil.
Compreender que a contabilidade não é uma prática neutra, mas sim um discurso
codificado que pode ser utilizado tanto para legitimar sistemas de exploração
quanto para sustentar movimentos de transformação social, é fundamental para o
exercício ético e responsável da profissão. Ao reconhecermos essas dimensões
históricas, ampliamos nossa consciência crítica e interdisciplinar na
contabilidade.
Tem
interesse por discussões na área da História da Contabilidade e deseja divulgar
sua pesquisa nesta coluna?
Entre
em contato. Juntos reuniremos esforços para o fortalecimento deste campo de
pesquisa no Brasil.
Thais
Alves Lira (thaislira@ufpr.br)
Professora
do Magistério Superior da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(UNIFESSPA). Doutoranda em Contabilidade no Programa de Pós-Graduação em
Contabilidade (PPGCONT) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em
Contabilidade pelo Programa de Pós-Graduação em Contabilidade (PPGCONT) da
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Gestão e Negócios pelo
Instituto Federal do Paraná (IFPR). Bacharela em Ciências Contábeis pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Integrante do Laboratório de Educação e
Pesquisa Contábil (LEPEC - UFPR).