Temos a honra de contar com a colaboração de nossa segunda convidada para apresentar sua trajetória na pesquisa. A Professora Angélica Vasconcelos atualmente é Coordenadora da Área Temática de História da Contabilidade do Congresso USP de Contabilidade e editora associada da Revista Contabilidade & Finanças. (Thais Lira, colunista)
No Recife, minha cidade natal, o Carnaval é mais do que uma festa; é uma expressão de identidade cultural e de amor à tradição. Nos blocos carnavalescos, há sempre uma figura que me fascina: o porta-estandarte. Essa pessoa carrega, com orgulho e cuidado, o símbolo do bloco, um estandarte que, muitas vezes, é elaborado com grande esmero, mesmo quando os recursos financeiros são limitados. Ele lidera o grupo, abre caminho e representa a essência daquela coletividade.
Escolhi o estandarte como metáfora para a minha trajetória porque vejo minha dedicação à história da contabilidade de forma semelhante. Carrego comigo essa bandeira com orgulho, buscando valorizar um campo de estudo que, para muitos, ainda é invisível ou subestimado. Assim como o estandarte do Carnaval, a história da contabilidade pode parecer simples à primeira vista, mas revela uma riqueza imensa quando examinada com atenção. É essa riqueza que me motiva a seguir em frente, mesmo diante de desafios.
Sempre nutri uma paixão por História desde tenra idade. Lembro-me, particularmente, das aulas da professora Elizabete, na sétima e oitava séries do então ginásio. Ficava hipnotizada pelas suas explicações e envolvida em debates sobre os temas apresentados. Para mim, História nunca foi apenas uma sucessão de datas e eventos; era um campo de descoberta, reflexão e compreensão das forças que moldam o mundo.
Meu contato com a Contabilidade surgiu posteriormente, durante o segundo grau, atual ensino médio, quando se apresentou a oportunidade de um estágio no Banco do Nordeste, um banco de fomento regional. O processo seletivo exigia que os aprovados cursassem um curso técnico em contabilidade, em vez do tradicional curso científico. Fui aprovada no concurso e iniciei minha jornada nesse universo. Durante o estágio, trabalhei no setor de contabilidade do banco, onde pude ver, na prática, os conceitos aprendidos no curso técnico. Esse primeiro contato com a contabilidade, embora técnico, despertou em mim uma paixão pela área que só se aprofundaria com o passar dos anos.
Contudo, a curiosidade sobre o passado da contabilidade levou mais tempo para florescer. Durante as aulas iniciais na Universidade Católica de Pernambuco, onde comecei minha graduação, o ensino focava-se principalmente nos conceitos e princípios contábeis contemporâneos, sem contextualização histórica ou discussão sobre a evolução da disciplina ao longo do tempo. Posteriormente, transferi-me para a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde finalmente conclui meu bacharelato. Foi lá, na disciplina "História do Pensamento Contábil", ministrada pela professora Ana Lúcia Fontes, que tive meu primeiro contato formal com a história da contabilidade. Meu interesse por história foi decisivo para o envolvimento com essa disciplina.
Inicialmente, as aulas abordaram práticas contábeis desde a pré-história, destacando que a invenção da escrita teve, entre outras motivações, o controle de recursos. O curso seguiu discutindo as contribuições das escolas europeias e norte-americanas. Apenas no final do semestre houve uma aula sobre a contabilidade no Brasil, baseada em um material que afirmava que as primeiras práticas contábeis no país surgiram apenas após 1808, com a chegada da família real portuguesa. Essa afirmação incomodou-me profundamente. Como seria possível que, em meio à intensa atividade econômica da era colonial, não houvesse qualquer registro ou controle de riquezas? Expressei minha dúvida à professora, que prontamente sugeriu que eu investigasse essa questão.
Essa provocação tornou-se o marco inicial da minha jornada na pesquisa histórica. Minha motivação passou a ser revelar e valorizar as práticas contábeis no Brasil muito antes de 1808, demonstrando não apenas sua existência, mas também sua complexidade e qualidade. Meu objetivo não era comparar essas práticas às de outros países, mas mostrar que a contabilidade no Brasil possui uma identidade única, enraizada em sua realidade social e econômica. Ela não é melhor nem pior, mas é nossa, e merece ser compreendida e reconhecida.
Minha imersão na pesquisa histórica começou de forma autodidata. Como estudante de graduação em Ciências Contábeis, procurei entender como os historiadores trabalhavam com fontes primárias. Mas no curso não tínhamos disciplinas que nos conedesse esse instrumental. Foi explorando a biblioteca da UFPE que descobri o livro A Escrita no Brasil Colônia, de Vera Lúcia Costa Acioli. Trata-se de um guia valioso para a leitura de documentos manuscritos, utilizado como livro-texto na disciplina de paleografia. Esse livro também mencionava a existência de um laboratório de pesquisas em História na UFPE, o que me levou a buscar diretamente aquele Departamento. Lá, fui recebida de forma calorosa, apesar de não ser aluna da área, e tive o privilégio de acessar documentos históricos no laboratório.
O primeiro documento que analisei, utilizado no meu Trabalho de Conclusão de Curso, foi-me sugerido por um funcionário do laboratório, Levi Rodrigues, que, ao ouvir sobre meu interesse, indicou um acervo sobre um seminário religioso do século XVIII em Recife. Esse momento foi crucial para minha formação, pois aprendi a explorar documentos disponíveis, localizar novas fontes e interpretar os registros. Foi também quando descobri outros arquivos relevantes, como o Arquivo Estadual de Pernambuco e instituições no exterior.
O trabalho com documentos apresentou-me desafios inéditos. No laboratório, os documentos originais eram acessados por meio de microfilmes, e precisei aprender a operar as máquinas. Posteriormente, trabalhando com os documentos físicos nos arquivos, tomei consciência dos cuidados necessários para preservá-los, como o uso de máscaras e luvas. Essa experiência ensinou-me o valor da preservação documental, essencial para garantir que futuros pesquisadores também possam acessar essas fontes.
Minhas linhas de pesquisa atualmente dividem-se em dois focos complementares. De um lado, estudo a contabilidade enquanto prática social e disciplina, analisando como ela se transforma ao longo do tempo. Trata-se de um olhar para dentro. De outro lado, utilizo a contabilidade como fonte para explorar fenômenos históricos mais amplos. Um exemplo é minha pesquisa atual sobre o mercado de valores mobiliários em meados do século XVIII, em Portugal. Nela, os documentos contábeis são fundamentais para entender o funcionamento desse mercado, suas características de liquidez e estrutura.
Essa dualidade entre estudar a contabilidade em si e utilizá-la para compreender eventos sociais enriquece minha trajetória. A pesquisa histórica tem sido um constante aprendizado, alimentado por curiosidade, rigor metodológico e a colaboração com outros profissionais. Descobri que, mesmo quando não sabemos por onde começar, conversar com funcionários de arquivos e explorar as possibilidades existentes pode abrir caminhos inesperados e frutíferos.
Desde muito cedo sempre tive em mente que os registros contábeis são muito mais do que números em balanços; eles são janelas para o passado, capazes de revelar as estruturas sociais, culturais e econômicas de uma época. A contabilidade, enquanto prática, é profundamente enraizada no contexto em que se desenvolve, refletindo relações de poder, organização de mercados e padrões de vida. Por exemplo, ao analisar um livro-caixa de uma empresa colonial, não apenas se compreende como os recursos eram geridos, mas também quais eram as prioridades econômicas, quem participava da atividade produtiva e como os ciclos comerciais influenciavam o cotidiano. Essa perspectiva ampliada é uma das razões que tornam os documentos contábeis fontes indispensáveis para a história, permitindo-nos ir além da análise técnica para uma compreensão integral das sociedades do passado.
É preciso olhar para a contabilidade além dos números e reconhecer a sua dimensão humana e social. Cada documento que analiso carrega as marcas de quem o produziu, das intenções por trás das decisões registradas e das limitações impostas pelo contexto. Acima de tudo, a pesquisa histórica fortaleceu minha crença de que entender o passado é essencial para construirmos um futuro mais consciente e conectado às nossas origens.
O estudo da história da contabilidade é, de fato, um campo ainda pouco explorado no Brasil. Embora existam trabalhos relevantes, muitos são iniciativas individuais, realizadas quase como um hobby, motivadas pela descoberta de documentos antigos. Contudo, esses esforços, apesar de importantes, frequentemente carecem do rigor científico necessário para uma pesquisa histórica robusta. A pesquisa histórica não se limita a narrar eventos e datas. Ela ilumina o passado de forma descritiva e analítica, ajudando a interpretar e explicar os contextos sociais, econômicos e culturais que moldaram essas práticas. Essa análise crítica não só esclarece o passado, como também nos liberta de preconceitos históricos não examinados, capacitando-nos a navegar o presente com mais consciência.
Sempre tive essa perspectiva muito clara. Por isso, cursei disciplinas em programas de pós-graduação em História durante meu doutorado em contabilidade e, recentemente, iniciei um segundo doutorado, agora em História, como forma de reforçar meu compromisso com a pesquisa histórica. Esse compromisso reflete minha crença de que a história da contabilidade é um campo legítimo, que merece dedicação plena, rigor metodológico e um espaço de visibilidade crescente.
Participo ativamente de grupos de pesquisa e iniciativas que buscam trazer maior reconhecimento a essa área. Sou, por exemplo, uma das fundadoras da Rede da América Latina de Contabilidade em História (RALCH), um grupo que reúne pesquisadores de diferentes países da América Latina. Na RALCH, promovemos discussões sobre história da contabilidade, ajudamos outros pesquisadores a desenvolverem suas ideias e fortalecemos o diálogo acadêmico internacional sobre o tema.
Além disso, atuo como editora associada da Revista Contabilidade & Finanças, uma das melhores do nosso país, na área de assuntos emergentes. Aceite o encargo na condição de que finalmente a história da contabilidade constasse como uma linha editorial, criando um espaço importante para a publicação de pesquisas nessa área, algo ainda raro nos periódicos de alta qualidade.
Outro marco foi a inclusão da história da contabilidade como uma área temática no Congresso USP de Contabilidade, um dos eventos mais prestigiados da área no Brasil. Atualmente, sou coordenadora dessa área, o que garante um espaço dedicado para discutir e apresentar pesquisas que são, muitas vezes, singulares.
Carregar esse estandarte é mais do que uma escolha acadêmica; é uma missão de vida. A história da contabilidade não é apenas uma ferramenta técnica, mas também um elemento cultural e social que nos permite compreender melhor nossas origens e desafios. Minha atuação busca não apenas valorizar essa área, mas também inspirar outros a explorá-la em toda a sua riqueza, ajudando a construir um futuro mais consciente e conectado ao nosso passado.
O ICBR agradece a Professora Angélica Vasconcelos pela colaboração com a coluna “Raízes Contábeis: Uma trajetória histórica”.
Tem interesse por discussões na área da História da Contabilidade e deseja divulgar sua pesquisa nesta coluna?
Entre em contato. Juntos reuniremos esforços para o fortalecimento deste campo de pesquisa no Brasil.
Thais Alves Lira (thaislira@ufpr.br)
Professora do Magistério Superior da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Doutoranda em Contabilidade no Programa de Pós-Graduação em Contabilidade (PPGCONT) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Contabilidade pelo Programa de Pós-Graduação em Contabilidade (PPGCONT) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Gestão e Negócios pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR). Bacharela em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Integrante do Laboratório de Educação e Pesquisa Contábil (LEPEC).