Manoel Raimundo Santana Farias


Fui convidado pelo presidente do Instituto dos Contadores do Brasil (ICBR), André Luis de Moura, para escrever um texto que inaugura o espaço de artigos de opinião dos associados do instituto. O convite me deixou muito honrado e feliz, mas, também, com uma grande responsabilidade de escrever algo que pudesse inspirar acadêmicos e praticantes no aprofundamento e na qualificação do debate de temas que desafiam o status e a evolução da contabilidade. Porém, quais são os temas que mais nos desafiam?

Uma das maneiras de responder a essa pergunta é fazendo um levantamento junto aos membros representativos da nossa área e a outra é acompanhando a literatura produzida por autores e pesquisadores renomados, em nível global. A primeira pode ser uma sugestão ao ICBR e a segunda é o que tento fazer a contento, com muita leitura, pois a produção é vasta. Aqui, vou resumir quatro temas que considero abrangentes e controversos e, como tal, demandam discussões que contribuam com a compreensão do assunto, e, muito mais importante, indiquem qual a relevância de se dirimir a controvérsia para a manutenção e o avanço da contabilidade. Claro, reconheço não se tratar de temas diretamente ligados à prática contábil, mas de algo com interface entre a academia e a prática. Minha justificativa é a proposta de construção de pontes, como uma necessidade que defendo, neste texto, como forma de unir a área para se fortalecer e se desenvolver.

A natureza da contabilidade. Compreende a busca de resposta à seguinte questão: o que é contabilidade? Há considerável literatura sobre esse tema, mas a controvérsia continua, com autores que sugerem ser arte, prática, tecnologia e ciência. Por que o tema é relevante? Porque a caracterização da área tem impacto direto na escolha de conteúdos e estratégias adotadas na educação contábil. A esse respeito, já escrevi um artigo propondo que é mais lógico caracterizar a área distintamente como: prática, tecnologia e ciência. Várias são as razões para isso. Por exemplo, o surgimento e a dinâmica de desenvolvimento delas, pois a prática é milenar, a tecnologia é secular e a configuração de uma ciência, em estágio inicial, é de décadas. Outras razões são que as questões práticas são distintas das questões tecnológicas e científicas, assim como os métodos necessários à formação de praticantes e de cientistas. A distinção tem base substantiva para justificá-la, mas tem caráter prático, como no desenho de currículos e de educação continuada. Outro aspecto prático e muito interessante é a relação de interferência entre as três abordagens: prática ó tecnologia ó ciência. Por isso a necessidade da construção de pontes para saber como a mudança em uma interfere na outra e o que é relevante para cada uma das abordagens. Por exemplo, na graduação entendo que o foco deve ser mais voltado à prática e ao uso de tecnologias, enquanto na pós-graduação o foco deve ser mais voltado para o desenvolvimento de tecnologias e de pesquisas científicas básicas e aplicadas.

A utilidade da informação contábil. Compreende a discussão sobre a utilidade da informação contábil para avaliação de desempenho e tomada de decisões de agentes econômicos e sociais à frente das organizações. Por que esse tema é relevante? Porque as políticas contábeis reguladas, nacional e internacionalmente, a exemplo do padrão internacional da contabilidade do International Accounting Standards Board (IASB) prescrevem que a informação contábil é útil se for relevante e se tiver representação fidedigna ou representar a realidade econômica das entidades. Porém, estudos empíricos, a despeito da ampliação e revisão das normas internacionais de contabilidade, têm indicado perda de relevância da informação contábil e problemas de representação, por deixar de fora do balanço, por exemplo, ativos intangíveis, que se tornaram predominantes nas modernas empresas de base tecnológica; e pelo aumento de estimativas influenciadas pelo julgamento subjetivo de gestores e preparadores das informações contábeis. Me parece que, nesse cenário, a prática contábil se torna muito mais complexa e, consequentemente, os caminhos para manutenção da relevância da contabilidade passam pelo entendimento e pelo desenvolvimento da tecnologia e da ciência contábil, que poderão vir a ser aplicadas, mas cujos processos para gerá-las são distintos da prática contábil. É aí que precisamos, por um lado, entender qual é o papel da academia e o que é tecnologia e ciência contábil, que precisam decorrer do uso do método científico e do desenvolvimento de modelos teóricos e de teorias, sem limitar a área ao rótulo de “ciência social aplicada” e, por outro lado, promover a formação de praticantes capazes de incorporar os avanços tecnológicos e científicos em suas práticas nas entidades. A esse respeito há inúmeras controvérsias como contrapor teoria com a prática, contrapor pesquisa qualitativa com pesquisa quantitativa, contrapor ciência básica com ciência aplicada etc.

A relevância do ensino para o desenvolvimento e para prática. Podemos começar pela discussão sobre se a formação que a academia fornece aos estudantes de contabilidade é adequada ao desenvolvimento da sociedade e àquilo que o mercado profissional necessita na prática. Por que esse tema é relevante? Porque, ao mesmo tempo em que a academia precisa atender às competências demandadas pela prática, não pode se limitar a elas, inclusive porque precisamos questionar, qual prática? A atual? A que ainda virá? Além disso, vamos formar profissionais para saber como fazer algo? Ou, o que fazer e por que fazer algo? Obviamente, uma abordagem mista tende a ser a solução e, para isso, novamente, a construção de pontes entre a academia e o mercado é indispensável, mas sem esquecer que o principal motor ou mecanismo da atividade acadêmica e da ciência é a curiosidade – que permite gerar novos conhecimentos, novas tecnologias, novos ramos de negócios e novos mercados, em vez de ficar restrita em atender às necessidades de mercados e práticas atuais.

O impacto da revolução tecnológica na contabilidade. Podemos começar pela discussão sobre o risco de o progresso tecnológico reduzir o mercado de atuação dos profissionais da contabilidade. Por que esse tema é relevante? Porque estamos diante de mudanças extremamente disruptivas nos negócios e na sociedade, com efeitos acelerados e corremos o risco de não nos adaptarmos na rapidez requerida. É provável que a resposta ao problema do risco de a tecnologia reduzir a oferta de emprego na sociedade seja a hipótese de que: o progresso tecnológico atual, da quarta revolução industrial, está afetando o mundo do trabalho e reduzindo o emprego tradicional, sem que novas formas de emprego ou de ocupações surjam, na mesma proporção em que as velhas formas desaparecem, e, portanto, a tendência geral seja o aumento do desemprego funcional. Essa hipótese pode ser acompanhada e testada empiricamente com dados e métodos estatísticos. No entanto, será a tendência geral também observada no mercado de atuação dos profissionais da contabilidade? A despeito das previsões alarmistas ou extremistas de que a contabilidade vai acabar, a tendência de redução da atividade contábil não foi observada em períodos históricos anteriores, porque a contabilidade expandiu as suas atividades diante do surgimento de novas tecnologias, por exemplo, dos transportes, que impulsionaram as grandes navegações e a expansão comercial, assim como com as tecnologias utilizadas na primeira revolução industrial, em que, no desenvolvimento do comércio e da indústria, a contabilidade se expandiu com o surgimento dos empreendimentos por prazo indeterminado, que deram origem ao conceito de continuidade, e das sociedades empresariais, que deram origem ao conceito de entidade, com a consequente ampliação da necessidade de apuração dos resultados obtidos pelas empresas para prestação de contas aos sócios e para o uso de credores, que se expandiram, financiando a revolução industrial. Mas, naquele período, a área respondeu com o desenvolvimento de novas especialidades, como auditoria e contabilidade de custos. Sendo assim, entendo que o nosso principal desafio, na atual revolução, é continuar gerando novos conhecimentos e novas especialidades que nos mantenham úteis e relevantes aos negócios e à sociedade. A resposta, pelo menos em parte, de como fazer isso, com êxito, passa pelos quatro temas mencionados.

 

* Manoel Raimundo Santana Farias: Doutor em Ciências (DSc.) e Mestre no Programa de Controladoria e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP). Professor da Faculdade Fipecafi. Associado do Instituto dos Contadores do Brasil (ICBR). Contador registrado no CRC-SP.

Contato: manoelfarias@alumni.usp.br


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